sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

UMA IDEIA TODA AZUL


Um dia o Rei teve uma ideia.

Era a primeira da vida toda, e tão maravilhado ficou com aquela ideia azul, que não quis saber de contar aos ministros. Desceu com ela para o jardim, correu com ela nos gramados, brincou com ela de esconder entre outros pensamentos, encontrando-a sempre com igual alegria, linda ideia dele toda azul.

Brincaram até o Rei adormecer encostado numa árvore.

Foi acordar tateando a coroa e procurando a ideia, para perceber o perigo. Sozinha no seu sono, solta e tão bonita, a ideia poderia ter chamado a atenção de alguém. Bastaria esse alguém pegá-la e levar. É tão fácil roubar uma ideia. Quem jamais saberia que já tinha dono?

Com a ideia escondida debaixo do manto, o Rei voltou para o castelo. Esperou a noite. Quando todos os olhos se fecharam, saiu dos seus aposentos, atravessou salões, desceu escadas, subiu degraus, até chegar ao Corredor das Salas do Tempo.

Portas fechadas, e o silêncio.

Que sala escolher?

Diante de cada porta o Rei parava, pensava, e seguia adiante. Até chegar à Sala do Sono.

Abriu. Na sala acolchoada, os pés do Rei afundavam até o tornozelo, o olhar se embaraçava em gazes, cortinas e véus pendurados como teias. Sala de quase escuro, sempre igual. O Rei deitou a ideia adormecida na cama de marfim, baixou o cortinado, saiu e trancou a porta.

A chave prendeu no pescoço em grossa corrente. E nunca mais mexeu nela.

O tempo correu seus anos. Ideias o Rei não teve mais, nem sentiu falta, tão ocupado estava em governar. Envelhecia sem perceber, diante dos educados espelhos reais que mentiam a verdade. Apenas, sentia-se mais triste e mais só, sem que nunca mais tivesse tido vontade de brincar nos jardins.

Só os ministros viam a velhice do Rei. Quando a cabeça ficou toda branca, disseram-lhe que já podia descansar e o libertaram do manto.

Posta a coroa sobre a almofada, o Rei logo levou a mão à corrente.

– Ninguém mais se ocupa de mim – dizia atravessando salões e descendo escadas a caminho das Salas do Tempo – ninguém mais me olha. Agora posso buscar minha linda ideia e guardá-la só para mim.

Abriu a porta, levantou o cortinado.

Na cama de marfim, a ideia dormia azul como naquele dia. E linda. Mas o Rei não era mais o Rei daquele dia. Entre ele e a ideia estava todo o tempo passado lá fora, o tempo todo parado na Sala do Sono. Seus olhos não viam na ideia a mesma graça. Brincar não queria, nem rir. Que fazer com ela? Nunca mais saberiam estar juntos como naquele dia.

Sentado na beira da cama o Rei chorou suas duas últimas lágrimas, as que tinha guardado para a maior tristeza.

Depois baixou o cortinado, e deixando a ideia adormecida, fechou para sempre a porta.

(COLASANTI, Marina. Uma ideia toda azul. São Paulo, Global, 2005.)

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024